Eu, como baterista amador 70% autodidata (somente recentemente resolvi fazer aulas de bateria), me identifiquei um pouco com esse texto do Lobão.
Matéria original publicada em 03/05/14 por Lobão (Veja)
Um dia desses, em visita a uma redação de jornal, uma das editoras,
talvez por cacoete de profissão, perguntou qual era a minha formação.
Sem pensar muito, respondi: “Sou baterista. Baterista autodidata”.
Refletindo
melhor depois, vi que a resposta não poderia ser outra. Penso como
baterista, percebo e deduzo o mundo ao meu redor como baterista. Expandi
meu universo de interesses e angariei uma série de outros ofícios a
partir desse.
Tocar bateria, pra mim, se confunde com o tempo em
que aprendi a andar. Talvez por ter adquirido sozinho e tão cedo essa
habilidade, acabei por desconfiar de qualquer tipo de professor que não
fosse aquele que designasse.
Todas as pequenas descobertas que
fazia quando criança, e que me causavam intensas alegrias, eram sempre
relacionadas ao fato de tocar bateria: todo número ímpar somado a si
mesmo vira par. Toda proparoxítona é uma quiáltera. O ritmo ternário
induz ao círculo, à espiral — daí a valsa. O binário tem a ver com o
sexo, com a guerra — por isso o samba, a marcha.
Todo problema
virava uma questão a ser resolvida através da bateria. Ansiedade? Ah, se
eu puder tocar cada vez mais lentamente, aniquilarei a ansiedade! Sim,
pois se você estiver ansioso jamais conseguirá seguir um andamento lento
com conforto e naturalidade (experimente baixar no seu celular um
daqueles aplicativos de metrônomo e tente acompanhar um ritmo qualquer
com os dedos. Em seguida, vá diminuindo gradativamente o andamento e
verá a dificuldade que é manter a precisão na proporção em que ele cai).
Percebi
que, quanto mais se tem domínio sobre o andamento lento, mais
maturidade musical se adquire. E isso vale para o resto das coisas da
vida. Do sexo à conversa de botequim.
Quem sabe toda criatura que
ama seu ofício seja conduzida a enxergar o mundo sob a ótica dessa
atividade. Para mim é assim. A bateria me apresentou conceitos como
temperança, arrojo, contenção, paciência, concentração, precisão e
também convicção (essa não tem porcentual: se você é 99,9% convicto,
você é um vacilão). Também me ensinou a ver o outro: para saber tocar,
antes de mais nada, é preciso aprender a ouvir. E a respirar, imaginar,
entender o silêncio e o tempo.
Minhas primeiras indagações sobre a
alma tiveram a mesma origem: vieram da relação de gratidão que passei a
ter com a minha independência motora. Afinal, se eu possuía membros de
uma solicitude comovente (meus pés, meus braços, meu calcanhar — todos
em sincronia com a minha vontade), onde minha alma habitaria? De onde
partiria a vontade de organizar as ordens para o resto do corpo? A
partir de que ponto eu não teria mais a fronteira que separa o que é meu
(meu corpo) do lugar que eu verdadeiramente habito?
E assim,
impelido pela curiosidade e pela autoconfiança que a bateria me
proporcionou, parti para outras várias atividades. Escrever foi uma das
primeiras. Quando escrevia, sentia que as vírgulas eram as viradas dos
tambores. A exclamação, a explosão dos pratos. A poesia, o fluir sonoro
de uma levada.
Tocar um instrumento nos desenvolve profundamente
como indivíduos e nos educa para conviver numa coletividade — o
aprendizado deixa clara a ordem natural das coisas: primeiro é preciso
construir-se.
Por isso decidi fazer esta pequena homenagem ao meu
principal e primevo ofício — um sinal de gratidão e amor àquilo que me
tornou uma pessoa melhor, mais útil e mais criativa. Desejo do fundo do
coração que cada leitor experimente intensamente essa paixão.
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The Iron Drummer - Presente da minha amiga Glaucia Miatto |